Ouvir o mundo com outros olhos
A língua portuguesa, que lhe sai das cordas vocais com a gramática trocada, aproveita-se da clareza do olhar para lhe desvendar a alma. Ao silêncio trata-o por tu. À vida com um sorriso. E que vida, que agora até deu em caloiro da Universidade de Aveiro.
O Fernando Dionísio nasceu com uma grave deficiência auditiva. Há 56 anos atrás, sem a tecnologia actual dos aparelhos auditivos nem os apoios educativos especializados que apenas chegariam décadas mais tarde, cresceu silencioso num mundo construído sem a medida dele. Mais ainda quando se nasce na aldeia de Vagos, num cenário do então Portugal profundo.
Sem ouvir os outros, não aprendeu a falar. Sem ouvir o mundo, estava condenado à incompreensão. Num golpe afortunado do destino, quis a vida que fosse menino para o Colégio da Imaculada Conceição, em Lisboa. "Naquele tempo era onde havia ensino especializado em Portugal", lembra. Pelas técnicas das solícitas freiras, senhoras de alguns arcaicos segredos da terapia da fala, começou a balbuciar as primeiras palavras, as primeiras frases, as primeiras conversas. E o mundo começou a ouvi-lo.
Ficou pela quarta classe que a escola não era mesmo para todos.
Regressou adolescente a Aveiro com outras falas nas mãos. Trazia o prazer da pintura, trazia a vontade de se fazer ouvir pelas cores e pelas formas.
Trabalhou durante 11 anos na fábrica da Vista Alegre. Mestre exímio da arte dos pincéis, das finíssimas pinturas imortalizadas em porcelana, cedo a fama se espalhou. Convites de fábricas onde os pintores eram a prata da casa, ou o ouro do negócio, aliciavam-no e o Dionísio foi arriscando de casa em casa, de obra-prima em obra-prima.
Hoje trabalha por conta própria para inúmeras empresas.
A ciência trouxe-lhe pelo meio a tecnologia para ir ouvindo mais do que quase nada. Primeiro "um daqueles aparelhos antigos, parecidos com um mini-rádio cheio de fios", depois um aparelho auricular mais discreto. Mesmo assim "nunca deu para perceber tudo o que falam as pessoas". Vozes masculinas distinguia-as das femininas e o piar dos pássaros do ronco dos motores.
Regresso às aulas
A medicina proporcionou-lhe há cinco anos um implante auditivo. Ainda assim precisa de ambientes silenciosos para acompanhar as conversas. A leitura dos lábios ajuda o cérebro a tentar compreender palavras que nunca haviam sido antes registadas.
Casou. Teve filhos. Faltava-lhe cumprir um outro sonho: estudar.
Através do programa Novas Oportunidades concluiu a escolaridade obrigatória. Não ficou por aí e este ano entrou na Universidade de Aveiro.
A paixão pelas artes ditou que Fernando Dionísio seja hoje caloiro do curso de Design. Outro percurso ainda agora começou. Nas veias ferve-lhe já as dificuldades próprias de quem entra numa Universidade. Acrescente-se-lhe a fervura de quem cresceu a ouvir o mundo com outros olhos.
"Tenho algum pânico com os trabalhos de casa", confessa. "Como vou fazer para cumprir os prazos de entrega? Não estou habituado". Acompanhar as aulas também é um quebra-cabeças para quem precisa de ambientes silenciosos para perceber o que é dito, para quem precisa de estar cara a cara com os outros para ir empurrando para os ouvidos o que ouve com a leitura dos lábios.
"Vai valer a pena o esforço que estou a fazer". Dionísio acredita nisso. "E acreditar é muito importante".
Fonte
A língua portuguesa, que lhe sai das cordas vocais com a gramática trocada, aproveita-se da clareza do olhar para lhe desvendar a alma. Ao silêncio trata-o por tu. À vida com um sorriso. E que vida, que agora até deu em caloiro da Universidade de Aveiro.
O Fernando Dionísio nasceu com uma grave deficiência auditiva. Há 56 anos atrás, sem a tecnologia actual dos aparelhos auditivos nem os apoios educativos especializados que apenas chegariam décadas mais tarde, cresceu silencioso num mundo construído sem a medida dele. Mais ainda quando se nasce na aldeia de Vagos, num cenário do então Portugal profundo.
Sem ouvir os outros, não aprendeu a falar. Sem ouvir o mundo, estava condenado à incompreensão. Num golpe afortunado do destino, quis a vida que fosse menino para o Colégio da Imaculada Conceição, em Lisboa. "Naquele tempo era onde havia ensino especializado em Portugal", lembra. Pelas técnicas das solícitas freiras, senhoras de alguns arcaicos segredos da terapia da fala, começou a balbuciar as primeiras palavras, as primeiras frases, as primeiras conversas. E o mundo começou a ouvi-lo.
Ficou pela quarta classe que a escola não era mesmo para todos.
Regressou adolescente a Aveiro com outras falas nas mãos. Trazia o prazer da pintura, trazia a vontade de se fazer ouvir pelas cores e pelas formas.
Trabalhou durante 11 anos na fábrica da Vista Alegre. Mestre exímio da arte dos pincéis, das finíssimas pinturas imortalizadas em porcelana, cedo a fama se espalhou. Convites de fábricas onde os pintores eram a prata da casa, ou o ouro do negócio, aliciavam-no e o Dionísio foi arriscando de casa em casa, de obra-prima em obra-prima.
Hoje trabalha por conta própria para inúmeras empresas.
A ciência trouxe-lhe pelo meio a tecnologia para ir ouvindo mais do que quase nada. Primeiro "um daqueles aparelhos antigos, parecidos com um mini-rádio cheio de fios", depois um aparelho auricular mais discreto. Mesmo assim "nunca deu para perceber tudo o que falam as pessoas". Vozes masculinas distinguia-as das femininas e o piar dos pássaros do ronco dos motores.
Regresso às aulas
A medicina proporcionou-lhe há cinco anos um implante auditivo. Ainda assim precisa de ambientes silenciosos para acompanhar as conversas. A leitura dos lábios ajuda o cérebro a tentar compreender palavras que nunca haviam sido antes registadas.
Casou. Teve filhos. Faltava-lhe cumprir um outro sonho: estudar.
Através do programa Novas Oportunidades concluiu a escolaridade obrigatória. Não ficou por aí e este ano entrou na Universidade de Aveiro.
A paixão pelas artes ditou que Fernando Dionísio seja hoje caloiro do curso de Design. Outro percurso ainda agora começou. Nas veias ferve-lhe já as dificuldades próprias de quem entra numa Universidade. Acrescente-se-lhe a fervura de quem cresceu a ouvir o mundo com outros olhos.
"Tenho algum pânico com os trabalhos de casa", confessa. "Como vou fazer para cumprir os prazos de entrega? Não estou habituado". Acompanhar as aulas também é um quebra-cabeças para quem precisa de ambientes silenciosos para perceber o que é dito, para quem precisa de estar cara a cara com os outros para ir empurrando para os ouvidos o que ouve com a leitura dos lábios.
"Vai valer a pena o esforço que estou a fazer". Dionísio acredita nisso. "E acreditar é muito importante".
Fonte